Ações sobre cheias no RS testam responsabilidade estatal em crises climáticas
As ações, ajuizadas contra as prefeituras e o governo estadual, cobram reparação às vítimas das inundações, que afetaram 2,4 milhões de pessoas em quase todos os municípios gaúchos. Especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico avaliam que os julgamentos serão um teste massivo do entendimento do Judiciário sobre a responsabilidade estatal em crises climáticas, um assunto que deve ganhar relevância nos próximos anos.

Enchentes no Rio Grande do Sul atingiram 2,4 milhões de pessoas no ano passado
“O poder público tem usado muito o argumento de que foi um evento climático extremo, com chuvas não previstas, para se desvencilhar da responsabilidade quanto à prevenção dessas enchentes”, afirma a advogada Eduarda Botelho Garcia, que representa a União das Associações de Moradores de Porto Alegre (Uampa) em uma ação civil coletiva contra a prefeitura da capital.
A maioria das causas tem valor inferior a 60 salários mínimos, o equivalente a aproximadamente R$ 91 mil. Em geral, trata-se de moradores que buscam cobrir custos dos reparos nas casas, de consertos de veículos e da compra de móveis e eletrodomésticos, entre outras demandas; ou pequenos empresários que perderam mercadorias e ficaram impedidos de trabalhar por causa das chuvas.
“Nós patrocinamos ações de pessoas físicas que tiveram as moradias danificadas, por exemplo, e também de empresários que tiveram prejuízo com mercadoria ou não puderam trabalhar por determinado período. Uma oficina mecânica, por exemplo, teve de parar por três semanas depois da enchente. Ficou aí um lucro cessante, que estamos cobrando na ação”, explica o advogado Iboti Barcelos, que atua em dezenas de casos individuais.
TJ-RS criou núcleo especializado
Os primeiros processos chegaram ao TJ-RS há mais de um ano, mas nenhum foi julgado até o momento. O motivo, segundo o tribunal, foi a aplicação de um filtro cuidadoso no recebimento dos pedidos. Foram extintas sem resolução de mérito, por exemplo, centenas de ações movidas por membros de uma mesma família ou moradores do mesmo endereço.
“Fomos rigorosos no recebimento das petições iniciais, a fim de evitar o ajuizamento de ações desnecessárias e de forma predatória, o que acabou por alongar o trâmite da ação”, explicou o juiz Mauro Peil Martins. Ele coordena o Núcleo Enchentes 2024, criado pelo TJ-RS em outubro para centralizar todos os pedidos relacionados às cheias no estado.
O núcleo recebe não apenas as cobranças de indenização, mas também ações que pedem o Pix SOS — auxílio oferecido pelo governo estadual após a tragédia — ou o cancelamento de contas de água e luz, por exemplo. Das 13 mil ações que tramitam atualmente no núcleo, pouco mais de dez mil são pedidos de indenização, segundo apurou a ConJur por meio da base de dados do Conselho Nacional de Justiça.
Para reduzir o risco de decisões contraditórias, o TJ-RS concentrou inicialmente os processos nas mãos de sete juízes, posteriormente reduzidos para cinco. Segundo Martins, o tribunal adotou exigências uniformes para padronizar o trâmite das ações, mas isso não garante que elas terão o mesmo resultado.
“No que tange ao mérito nas ações indenizatórias, ainda não está definido se todos irão julgar no mesmo sentido. Pode ser que haja divergência, dentro do que permite o sistema do livre convencimento motivado que vigora no Direito brasileiro. Ou seja, o juiz tem autonomia para decidir, desde que fundamente sua decisão”, afirma o magistrado.
O papel do Estado
Os pedidos de indenização por danos decorrentes de eventos climáticos costumam ser decididos com base na teoria do risco administrativo. Segundo essa tese, o Estado deve reparar danos causados a terceiros por suas ações ou omissões, independentemente da comprovação de culpa ou dolo.
Na prática, o que determina o dever de indenizar é a comprovação de que o prejuízo foi provocado por algo que o poder público fez ou deixou de fazer. Em janeiro deste ano, por exemplo, o município de Bauru (SP) foi condenado a indenizar uma moradora que teve a casa alagada pelas chuvas porque a prefeitura construiu um muro que impediu o escoamento das águas. A inundação, portanto, foi provocada por um ato comissivo — uma ação concreta — do poder municipal.
Entretanto, a ocorrência mais comum nos processos é a do ato omissivo. Nesse caso, o autor da ação precisa demonstrar que o poder público deixou de fazer uma obra ou uma medida preventiva que teria evitado o dano. “O Estado só pode ser excluído da responsabilidade em duas hipóteses: se houver culpa exclusiva da vítima ou no caso de um evento imprevisto, de força maior”, explica o advogado Diego Amaral, especialista em Direito Imobiliário.
Tanto o governo do Rio Grande do Sul quanto a prefeitura de Porto Alegre têm afirmado, nos autos, que as chuvas de 2024 superaram qualquer capacidade de prevenção. Esse argumento tem sido aceito na Justiça Federal, que já rejeitou algumas ações indenizatórias que incluíram a União no polo passivo. Em um pedido negado em janeiro deste ano, por exemplo, a 9ª Vara Federal de Porto Alegre afirmou que o poder público não pode ser o “segurador universal” dos prejuízos sofridos pela população.
“Em caso de danos materiais provocados por enchentes decorrentes de precipitações em volumes anormais e excepcionais, como no presente caso, deve-se considerar que se trata de evento não previsível, não sendo cabível atribuir ao poder público, em qualquer esfera, o dever de suportar o custo de todos os prejuízos sofridos pelos particulares, sob pena de se atribuir a condição de segurador universal”, afirmou o juiz federal substituto Bruno Brum Ribas.
O caso de Porto Alegre
Parte dos processos no TJ-RS está paralisada desde abril, quando o Ministério Público do Rio Grande do Sul ajuizou uma ação civil pública contra a prefeitura de Porto Alegre. O processo cobra reparação pela inundação dos 19 bairros que estão na área de cobertura do sistema de proteção contra cheias, um conjunto de diques que separa a capital das águas do Lago Guaíba.
As ações individuais referentes a esses bairros foram suspensas até que haja resolução de mérito no processo do MP-RS. Os promotores pedem indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 50 milhões, a serem aplicados em medidas de prevenção, além de danos materiais e morais aos moradores e comerciantes dessas regiões.

Moradora do bairro Humaitá, em Porto Alegre, durante as cheias
O MP-RS anexou aos autos um estudo técnico que aponta, bairro por bairro, as áreas que deveriam ter sido poupadas da inundação pelo sistema de proteção. “As falhas no sistema de defesa contra enchentes foram muitas em abril e maio do ano passado. Inúmeros prejuízos tiveram os moradores residentes nos bairros atingidos”, afirma a ação.
A prefeitura de Porto Alegre rejeitou as conclusões do MP-RS. Em contestação apresentada nos autos, o município afirma que o sistema de proteção foi projetado para um nível de cheia equivalente ao antigo recorde de chuvas na capital, em 1941, e que o evento do ano passado superou essa marca. Segundo a administração municipal, o dever de agir “não era plausivelmente exigível” a qualquer autoridade.
“O dano alegado na exordial não é fruto de omissão ou falha na prestação de serviço por parte do ente municipal, mas, sim, de um evento natural extraordinário e inevitável, inclusive considerados os parâmetros técnicos do sistema de proteção”, alega a prefeitura.
Por: Consultor Jurídico
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